domingo, 8 de abril de 2012


60 Primaveras

Novela de Geraldo J. Costa Jr.


1.
Saibam todos. Eu já fui um grande homem. Pena que isso se deu quando eu tinha vinte e poucos anos.
Eu não sabia exatamente o que queria ser. Talvez um pianista. Talvez um escritor. Em ambos os casos, eu morreria de fome. A única certeza que eu tinha era de que não passaria o resto de minha vida atrás de um computador. Por isso, naquela manhã, eu voltara todo satisfeito para casa, após o teste que havia feito para trabalhar no banco. Eu errara tudo de propósito. E colocara a culpa no meu raciocínio lento, na minha inaptidão para cálculos e no meu desconhecimento digital, o que me impedira de abrir o programa do computador à minha frente.  Nenhum desses argumentos convencera meu pai, cada vez mais descrente dos sonhos que um dia alimentara em relação a mim, seu filho mais novo e mais problemático. Durante o dia minha vida era algo, digamos vegetativo. Transcendente. Mas não era o que se repetia à noite, sempre depois das onze, quando eu me trancava no quarto para escrever. Eu queria muito ser músico, pra poder compor baladas que fizessem sussurrar as menininhas virgens, idiotas e metidas, contudo, duas descobertas precoces logo me fizeram mudar de idéia. A primeira, o meu dedo mindinho não conseguia alcançar a corda do violão. A segunda, eu não precisava saber música para escrever o que sentia. E desde então, fora assim. Escrevo sobre o que sinto, vejo e acredito. E, que me perdoem os eruditos, dane-se o resto.
Eu tinha umas esquisitices que só mesmo vendo pra crer. Uma delas, viajar de trólebus, no horário das 11 da noite. A outra, admirar o crepúsculo, debruçado sobre a murada do Lago Azul, um parque municipal na região norte da cidade. Eu chegava lá quase sempre às cinco e meia da tarde e ficava olhando para o céu, que, de azul, tornava-se vermelho, e depois cinza, e depois preto. Às vezes, coberto de nuvens, às vezes, cheio de estrelas. Mas nunca perdi meu tempo olhando muito para as estrelas, não. As nuvens sempre me foram mais interessantes, porque nunca era as nuvens a mesma coisa e nunca era coisa nenhuma. Malditas nuvens.
Sempre fui avesso aos amigos, aos irmãos e aos primos, porque não era de confiar nas pessoas. E também, nunca me esforcei para conquistar a confiança de ninguém. De modo que sempre fui uma ilha cercada de tubarões.
Meu pai era um próspero comerciante. Tinha uma padaria. Era ignorante que só vendo. Mas se orgulhava de ter uma qualidade que julgava essencial. Só pensava em dinheiro. Nunca lera aos finais de semana o caderno de cultura de nenhum grande jornal da capital. Mas, o caderno de economia, ele o devorava, principalmente, aos domingos, atento à cotação do dólar, dos juros, das aplicações a médio e longo prazo. Era filho de feirantes. E para o desespero de minha mãe – metida a besta que só ela – vivia com a caneta pendurada sobre a orelha. Meu pai não sabia lidar com calculadora, fazia contas em papel de pão, jornais e guardanapos, ou na palma da mão, se nada encontrasse pela frente. Pressa era com ele mesmo. Só puxava conversa comigo, para perguntar como havia me saído nas provas, sobre as quais, graças à curiosidade mórbida de minha mãe, ele estava sempre bem informado.
Papai não tinha nenhuma preocupação de diminuir um pouco sua ignorância, mas não admitia que os filhos enveredassem pelo mesmo caminho. Dizia que não iria criar filhos para que estes passassem a juventude a carregar caixas de tomate nos ombros, montando e desmontando barracas na feira, nem atendendo, atrás de balcão, clientes nem sempre educados e tolerantes.
Seu Gumercindo – ele adorava este nome! – queria que seus filhos fossem doutor. Fez três apostas. Acertou duas.
Apesar de sua incorrigível grosseria – da qual muito se orgulhava – era um homem de bom coração. Tinha língua ferina, é verdade. E se achava perseguido por todos. Um estranho, para ele, era um inimigo. Os poucos que gozavam, porém, do privilégio de sua amizade e confiança, eram incapazes de falarem mal de papai.
Nós morávamos numa casa grande, confortável, que Seu Gumercindo construíra aos poucos, à medida que colhia os dividendos de sua polpuda caderneta de poupança, naquilo que ele definia orgulhosamente e cheio de entusiasmo como “o milagre econômico do Sarney”. Vivia reclamando, escondido pelos cantos, que a casa já poderia estar concluída há muito tempo, não fosse obrigado a atender o luxo incorrigível e desnecessário – segundo ele – de minha mãe, que vivia trocando os móveis da casa a cada ano. Acho que minha mãe era muito boa de cama, porque eu nunca vira o Seu Gumercindo lhe negar alguma coisa. E um homem que se preze, só se sujeita aos caprichos de uma mulher, quando esta o satisfaz em todos os sentidos. Todos.
Onde foi que li esta baboseira?
Bom, vendo a coisa por outro lado, mamãe era mesmo uma tentação. Cheirosa e bem vestida. Lindos cabelos sempre bem penteados. Arrancava suspiros e olhares deslumbrados dos fregueses com mais de quarenta, da padaria de papai.
Eu ficava pensando, qual a afinidade poderia haver entre eles. Mamãe, toda cheia de pose, professora, falava três idiomas, tinha curso superior. Leitora de Voltaire, Rousseau, Proust e Joyce (Sim, isto mesma, ela conseguia!). Uma das mais assíduas freqüentadoras do centenário Gabinete de Leitura da cidade. Habitual pesquisadora do Arquivo Histórico. Trajava-se com elegância. Falava corretamente o português, sem ser antipática; era poetisa, ativa participante do abominável círculo literário, e colaboradora de um dos matutinos locais, no qual escrevia uma coluna, aos domingos. E papai... Bem, papai...
Eu só fui entender as coisas, quando, certa vez, meu irmão disse-me que os gritos de mamãe, durante a noite, não eram exatamente de dor. Eu tinha 12 anos, quando meu irmão explicou-me finalmente o que eram aqueles gritos e gemidos de mamãe. Eu tinha mais de 20 anos, e Seu Gumercindo e Dona Vera, quase 30 de casados, e ela, continuava gritando.
Benzadeus! Como diria vovó Mercedes.
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